A Prof.ª Vera Lúcia Santiago, coordenadora do Grupo LEAD da UECE, concedeu no início deste mês, uma entrevista sobre a acessibilidade de pessoas com deficiência e a perspectiva das pesquisas em audiodescrição e legendagem para surdos.
Há
cerca de 15 anos a acessibilidade para surdos e cegos nos meios
audiovisuais tem sido a causa pela qual luta a professora Vera Lúcia
Santiago Araújo. É meta da pesquisadora permitir que os meios se
adaptem à surdez e à cegueira incluindo as pessoas que passaram
anos à margem dos eventos culturais.
É
trabalho (e desejo) dela fazer com que o surdo e o cego participem,
por exemplo, de uma exposição de arte, de uma visita ao museu, de
uma sessão de cinema, de um jogo de futebol. Por isso, a professora
Vera investe nos trabalhos com audiodescrição, para cegos, e com
legendagem e janela de Libras (a Língua Brasileira de Sinais), para
surdos.
Nesta
entrevista ao O
POVO,
ela celebra as conquistas que as pesquisas nas áreas já obtiveram -
como o maior acesso a esses recursos, o aumento no número de
profissionais para os serviços, o avanço das pesquisas e a maior
conscientização de que cegos e surdos podem, sim, consumir os
mesmos produtos culturais que aqueles que veem e ouvem.
Mas,
como não é fácil incluir uma comunidade que passou várias
gerações alheia à cena cultural, há obstáculos. É difícil
convencer produtores culturais de que há um público excluído das
obras. Assim como não é fácil fazer com que o poder público se
aproprie da causa. Muitas vezes, as ações ficam restritas ao gestor
que está no comando. E, por vezes, é um processo lento também
mostrar aos surdos e cegos que eles têm direito à inclusão.
É
aos poucos que a professora Vera, junto com demais pesquisadores da
audiodescrição e da legendagem, vai argumentando a favor de um
grupo que clama para ser compreendido.
O
POVO
– Além das pesquisas, como atua o Laboratório de Tradução
Audiovisual que a senhora coordena, na Uece?
Vera
Lúcia Santiago Araújo
– Já fizemos audiodescrição em vários lugares, em cinema,
exposições culturais, no Cine Ceará (festival de cinema). Isso
chamou atenção de alguns produtores culturais, mas tudo o que está
acontecendo com os profissionais que saíram da Uece (a Universidade
Estadual do Ceará) tem sido por iniciativa governamental. Com o
atual secretário da Cultura (do Estado), Guilherme Sampaio, que é
aberto a essas questões de acessibilidade, estão acontecendo vários
eventos nessa área. Mas acho que ainda estão faltando mais ações.
Os profissionais estão aí, mas os produtores não estão
sensibilizados para tornar seus produtos acessíveis. É possível
tornar acessível uma peça de teatro, um filme, uma exposição de
arte, um jogo de futebol ou qualquer outra competição esportiva.
Fizemos recentemente, na pesquisa de um mestrando (da Uece) que é
cego, a audiodescrição de um jogo do Ceará, no Castelão. Mas
falta que essa iniciativa parta dos produtores culturais, contratando
profissionais, e não que isso parta apenas de universidades e do
poder público.
OP
– Quem são esses produtores a que a senhora se refere?
Vera
– Cineastas, produtores culturais, produtores do próprio Cine
Ceará. Só fizemos parceria com o evento uma vez. Parece que neste
ano terá novamente.
OP
– Como a tecnologia está aliada à acessibilidade nos meios
audiovisuais hoje?
Vera
– Outros lugares do Brasil já têm aplicativos para que a pessoa
com deficiência possa acessar do seu celular a audiodescrição,
legendas ou a janela de Libras, no cinema. Mas, para isso, os cinemas
precisam disponibilizar a tecnologia. Isso está engatinhando. No
Ceará tem um grupo que trabalha com isso. Já tive reunião com
eles. É o grupo do professor Agebson Rocha, do IFCE (Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará). Pelo que ele
me falou, a intenção é desenvolver um aplicativo, mas ele não
conseguiu nenhum acesso às salas de cinema aqui.
OP
– O aplicativo desenvolvido pelo professor Agebson funciona com voz
sintetizada, em vez da voz humana. Na época em que foi lançado,
houve uma polêmica a respeito disso. O que a senhora pensa sobre
esse recurso?
Vera
– Acho que a voz humana é bem melhor. Há várias questões
envolvidas na audiodescrição, e a locução é uma delas, porque,
com ela, você dá vida, dá expressividade. No caso dos outros
aplicativos, a audiodescrição é feita com voz humana.
OP
– A principal proposta desse aplicativo é audiodescrever filmes
antigos. Para tornar os filmes acessíveis, esse aplicativo não é
útil, mesmo com voz sintetizada?
Vera
– Claro que sim. Nós estamos em fase de saber o que funciona e o
que não funciona. Conheço um projeto para tornar um curso de
matemática financeira acessível. Muitas das vezes a voz sintetizada
teve seu papel. Não dá para descartar. Também já tivemos
experiência para verificar uma audiodescrição mais detalhada e
outra menos, e pudemos observar que as duas deram resultado,
dependendo do público. Voz sintetizada é uma modalidade muito nova.
Acho que a melhor forma é você estar aberto a todas as
possibilidades, além de fazer pesquisa de recepção para ver o que
vai funcionar ou não.
OP
– Com mais profissionais no mercado para o trabalho da
audiodescrição e da legendagem, há como todos serem
absorvidos?
Vera
– Poderiam, se os produtores culturais os contratassem. O problema
é que, normalmente, os produtos não são transformados em
acessíveis.
OP
– E o que falta para tornar esses produtos acessíveis?
Vera
– Há o problema do acesso das pessoas com deficiência a esses
produtos culturais. É difícil convencer os produtores culturais da
existência desse público. Muita gente não conhece a audiodescrição
e a legendagem. Muitos deficientes visuais desconhecem que podem ir à
exposição de arte. Por exemplo, a exposição do Da Vinci (do
artista italiano Leonardo Da Vinci, que está ocorrendo em
Fortaleza). É uma exposição maravilhosa, mas ninguém pensou em
acessibilizá-la. Além dela, muitas outras exposições
interessantes não são acessibilizadas. O que acontece são ações
pontuais. A Secretaria de Cultura, por exemplo, faz um evento e
decide colocar audiodescrição e legendagem. Mas isso são coisas
bem pontuais. É preciso tornar acessível aquilo que está
disponível à população.
OP
– Alguns produtores reclamam que já colocaram recursos de
acessibilidade em suas obras, mas o número de pessoas com
deficiência que visitaram o local foi muito baixo. Como fazer para
haver mais interesse?
Vera
– A primeira coisa é convencer a pessoa com deficiência de que os
produtos culturais não podem ser realizados nos horários que eles
preferem. Não há uma resistência, e, sim, um desconhecimento. Na
Inglaterra houve uma campanha nacional, falando sobre audiodescrição,
legendagem e interpretação da língua de sinais. Isso já é algo
incorporado lá. Todos os DVDs que saem lá já têm esses recursos
disponíveis. Acho que está faltando uma campanha, uma mobilização.
Já participei de um congresso que não conhecia audiodescrição.
OP
– Aqui no Brasil, a senhora tem algum modelo de bom exemplo de
acessibilidade?
Vera
– Já tivemos várias exposições. Uma delas foi a Viva Fortaleza,
realizada no Dragão do Mar. Ela foi tornada acessível com vídeos
audiodescritos. Temos uns 12 DVDs acessíveis, como Irmãos de Fé,
do padre Marcelo Rossi, o filme do Chico Xavier (Chico Xavier - O
filme), o filme sobre Bezerra de Menezes (Bezerra de Menezes - O
diário de um espírito). Também tivemos Ensaio sobre a cegueira,
que foi audiodescrito pelos meus alunos de Belo Horizonte.
OP
– Quando foi feita a audiodescrição dos filmes do Cine Ceará,
muitos cegos reclamaram que eram obras desconhecidas e queriam ter
acesso a filmes comerciais. Como é o contato com esses produtores?
Vera
– Sempre é o cineasta que se sensibiliza, mas ele quer que o
trabalho seja feito de graça. O que a gente quer é que eles
entendam que somos profissionais e que precisamos ser pagos. Me
incluo, embora eu não viva disso, mas sou responsável pela formação
de pessoas que querem viver disso, e preciso que o mercado esteja
aberto para eles. Os alunos se apaixonam, entram de cabeça na
história, mas não conseguem entrar no mercado.
OP
– Mas isso ocorre porque o cineasta não vê um ganho imediato para
ele, não?
Vera
– Talvez. Em termos de público.
OP
– Qual o papel que o deficiente pode desenvolver, para convencer o
cineasta da importância da acessibilidade?
Vera
– O deficiente precisa acreditar que ele tem direito ao acesso.
Após tanto tempo de exclusão, ficou complicado a pessoa com
deficiência acreditar que ela pode ir a uma peça de teatro. E todas
as vezes que trabalhamos em uma peça, é uma logística enorme.
Temos que convencer o produtor a alugar o equipamento. Muitas vezes
fizemos sem esse equipamento, com todos os alunos. Na época, a
diretora do Theatro José de Alencar, Izabel Gurgel, cogitou comprar
esse equipamento, que não é tão caro. Graças a Deus agora, na
Uece, temos esse equipamento. Mas ele é para pesquisa, e não será
disponibilizado para o público.
OP
– Quanto custa?
Vera
– R$ 33 mil o equipamento completo, com cabine para os
audiodescritores, rádios para recepção e mesa de som. Os rádios é
que são mais caros.
OP
– A senhora levou um grupo de cegos para um jogo no Castelão. Como
foi esse trabalho?
Vera
– Fez parte de uma pesquisa de mestrado de um aluno da Uece, o
Celso Nóbrega. A proposta era disponibilizar a audiodescrição em
jogos de futebol. Já existem várias ações mostrando que o cego
que vai ao estádio precisa da audiodescrição, para descrever a
torcida, a comemoração, saber se houve algum incidente dentro do
estádio. O que a gente percebe é que muitos deficientes acompanham
de casa, porque acham que não é necessário ir ao estádio. Mas
estamos tentando encontrar o ponto.
OP
– Como é a preparação do audiodescritor que trabalha em um filme
ou peça e daquele que realiza a audiodescrição de um evento ao
vivo?
Vera
– São preparações diferentes. Para quem vai trabalhar em filmes,
audiodescrevendo, legendando ou interpretando com Libras, é
necessário que conheça um pouco sobre cinema. Tem que estar entre o
cinéfilo e crítico de cinema. Ele tem que conhecer o gênero que
está audiodescrevendo. Tem que ter noções de linguagem de câmera,
história do cinema. Se ele vai para televisão ou teatro, a mesma
coisa. No caso do teatro, há uma diferença, porque embora o
audiodescritor tenha o roteiro, muita coisa acontece na hora, de
forma improvisada. No caso do ‘ao vivo sem roteiro’, como um jogo
de futebol, o audiodescritor precisa munir-se de informações
básicas, como história do time, conhecer o campeonato e os
jogadores, além de todas as questões que possam surgir na hora. É
preciso que o audiodescritor esteja no perfil do que será
audiodescrito.
OP
– Como os grupos de pesquisa na Universidade podem ajudar a tornar
a audiodescrição e a legendagem mais acessíveis para emissoras de
TV e produtoras de cinema?
Vera
– A universidade procura recursos de todas as formas para realizar
o trabalho. E a maioria desses recursos vem por meio de editais
públicos.
OP
– Os editais de fomento à cultura têm contemplado a
audiodescrição?
Vera
– Até bem pouco tempo, não. Mas agora, com regulamentação da
Agência Nacional de Cinema (Ancine), o Governo só irá financiar
projetos que tenham cópias acessíveis.
OP
– E como está a acessibilidade para surdos e cegos na TV?
Vera
– Era para ter começado em 2008. Duas horas semanais das emissoras
de TV tinham que ter audiodescrição, legendagem ou Libras. A
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) entrou
com recurso no Ministério das Comunicações para que fosse retirada
a audiodescrição. Eles alegaram que não havia profissionais e que
as emissoras não estavam preparadas. Depois de muita discussão e
portarias, a audiodescrição começou, mas apenas para o sinal
digital. Hoje quatro horas semanais das emissoras são
audiodescritas, e daqui a dez anos deverão ser 20 horas semanais.
OP
– Isso é razoável?
Vera
– É muito pouco, principalmente se não houver um comprometimento
das emissoras. Elas podem audiodescrever um filme e passar mais de
uma vez. Eles estarão cumprindo a lei, é muito pouco. Desde 2006 o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que as campanhas
eleitorais tivessem a janela de Libras. As emissoras colocam uma
janela muito pequena, que quase não dá para ver. Eles cumpriram a
lei, mas não promoveram acessibilidade.
OP
– Qual é a situação do Ceará em termos de acessibilidade?
Estamos em uma situação ruim ou já fomos piores?
Vera
– Sempre tivemos um certo apoio dos governos estadual e municipal.
Agora mais ainda, com o secretário Guilherme Sampaio (da Cultura do
Estado), mas é sempre uma questão pontual. Todo mundo acha lindo e
maravilhoso, mas precisamos de mais apoio.
OP
– A Uece tem pesquisado há muito tempo sobre esses temas, mas,
paradoxalmente, parece não haver muitos alunos com deficiências
visual e auditiva na Universidade. A senhora sabe quantos cegos e
surdos estão matriculados na Uece atualmente?
Vera
– Cegos, uns 20. Surdos, até onde eu saiba, nenhum. A UFC
(Universidade Federal do Ceará) não tem pesquisa nessa área, mas
tem uma secretaria, coordenada pela professora Vanda Leitão (a
Secretaria de Acessibilidade UFC Inclui). A UFC tem uma política de
acessibilidade. Na Uece, acho que a acessibilidade não é
prioridade, creio que é mais por desconhecimento. Temos uma comissão
chamada Uece Acesso mas, na minha visão, uma comissão não é
suficiente. No Centro de Humanidades da Uece temos cerca de quatro
cegos que precisam se virar.
OP
– Como a senhora começou a se interessar pela acessibilidade?
Vera
– Foi jogado no meu colo. Eu sempre gostei de legendagem. Quando
voltei do doutorado, em 2000, decidi trabalhar com ela. Como eu tinha
trabalhado com legendagem em VHS durante o doutorado, comecei a
trabalhar com a legendagem que passava na televisão. Pensei que era
apenas uma pesquisa, mas acabei ficando até hoje. A gente acaba se
envolvendo na luta dos deficientes. E tudo isso esbarra em uma
questão que, para mim, é muito cara, que são a educação, o
acesso e a inclusão, com recursos que estão ao alcance da mão.
Quando você começa a trabalhar nessa área, não sai mais.
OP
– Qual é o próximo desafio da senhora nessa área?
Vera
– Meu desafio é formar locutores para trabalhar com audiodescrição
em jogos de futebol. Isso é uma pesquisa do CNPq (Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Estou trabalhando com
fonoaudiólogos, tentando montar padrões para que eu possa formar
esses locutores. Agora que temos o equipamento para a audiodescrição,
outro desafio é formar audiodescritores para atuar ao vivo, sem
roteiros.
OP
– A senhora prevê um cenário melhor na audiodescrição durante
os Jogos Olímpicos de 2016?
Vera
– Acho que não. Até agora não houve contato para realização de
audiodescrição. Para um evento grande como as Olimpíadas, é
preciso que o trabalho comece muito antes. Se houver, creio que não
será bom. Os audiodescritores de todo o Brasil estão juntos, no
objetivo de tornar o País acessível.
OP
– Quem trabalha com uma pessoa com deficiência desenvolve uma
relação bem maior do que a de trabalho. Os alunos que se preparam
para serem audiodescritores devem, então, estar abertos a essa
proximidade.
Vera
– É necessário. Para trabalhar e fazer pesquisa, é preciso se
envolver. Se isso não acontecer, não é possível realizar
pesquisa. Quando tem um trabalho, convoco a todos que tenham essa
proximidade. É muito fácil para quem enxerga tapar os olhos e achar
que entende o cego. Não é assim. Também é fácil tapar os ouvidos
e dizer que conhece o mundo do surdo. E também não é assim. No
caso do surdo, outras questões existem, porque envolve outra língua,
a questão da comunicação e outra cultura.
OP
– Qual o papel do cego durante a elaboração da audiodescrição?
Vera
– O cego realiza o trabalho de consultoria. Mas, para fazer esse
trabalho, o cego tem que ter formação em audiodescrição. Não
basta ser cego. É aconselhável que ele participe do processo de
elaboração da audiodescrição ou que ele verifique o trabalho
final. Essa audiodescrição só acontece quando não é ao vivo. Mas
ainda não está fechada, porque estamos pesquisando para ver como
fica melhor. Tudo é um processo. No início, pensava-se que não
poderia audiodescrever eventos ao vivo. Isso caiu por terra. Ainda
estamos procurando o ponto.
OP
– A senhora acha que a formação de uma pessoa com deficiência
para trabalhar com produção cultural pode ocorrer na fase adulta?
Vera
– Por causa da língua, o acesso para os cegos é mais rápido e
pode ser feito em qualquer idade. Para os surdos, isso é mais
difícil. O mundo é mais inacessível para surdo do que para cegos.
Muitas pessoas acham que o surdo tem problema de cognição, mas isso
não é verdade. Há a barreira da família e principalmente da
língua.
OP
– O Governo Federal está criando um guia sobre acessibilidade. O
que a senhora acha indispensável nesse documento?
Vera
– Esse guia vai dizer para os produtores culturais como se faz uma
boa legendagem, audiodescrição e janela de Libras. Esse é o ponto
mais complicado. Estou mais envolvida com a legendagem. Nessa parte
vão constar questões técnicas, de linguagem e questões
tradutórias.
Fonte: http://www.opovo.com.br/app/opovo/paginasazuis/2015/06/15/noticiasjornalpaginasazuis,3453673/por-um-mundo-mais-acessivel-para-cegos-e-surdos.shtml